segunda-feira, 17 de abril de 2017

1. ESPAÇO FUTEBOL: É neste momento treinador dos sub-19 do Shandong Luneng, da China, naquela que é a sua primeira experiência internacional. Como está a correr esse projecto? Como é trabalhar com os mais jovens? O que lhe parece a evolução do futebol chinês actualmente, com o fortíssimo investimento que vem sendo realizado e a contratação de nomes sonantes?

FERNANDO VALENTE: Em PNL (programação neuro-linguística) dizemos que “o mapa não é o território...” e realmente quem quiser evoluir, desfrutar e viver a sério, tem que perceber que muitas vezes o “nosso mapa“ é muito limitado, mas o “território“ das oportunidades é ilimitado e quando saímos da nossa zona de conforto e estamos abertos a novas descobertas e a novos desafios nas diversas áreas da nossa vida, tudo se pode transformar...


Vir com 57 anos para a China, com uma vida estabilizada a vários níveis, demonstra muito da “loucura“ que tem sido a minha vida. Trabalhar numa das maiores Academias da China e contribuir para a evolução do futebol chinês, tem sido um desafio enorme e ao mesmo tempo uma aprendizagem fantástica.

Passar as barreiras da comunicação, porque trabalhas com um tradutor, que nunca sabes que tradução ele faz e que mensagem passa a quem te rodeia, ultrapassar a diferença da alimentação e de alguns aspectos da cultura Chinesa são dificuldades que requerem de ti uma grande capacidade de superação e ao mesmo tempo um apelo à tua imaginação, para criares estratégias que te permitam ir cimentando as tuas ideias.

O projecto do Shandong Luneng, visa potenciar os seus jovens jogadores, prepará-los para o Futebol profissional e promover a Academia, tentando conquistar o maior número de troféus possível a nível da formação. Na época que passou em 5 troféus nacionais, conquistámos 2 (sub-14 e sub-15) o que já foi relevante ao fim de 5 meses. Trabalhar com jovens é aliciante, mas encontrar jovens com grande deficit de compreensão do jogo é uma tarefa complicada, porque aqui e em muitos lados, trabalha-se muito, corre-se muito mas não se sabe muito bem para quê! Quebrar paradigmas que são inibidores e que limitam o potencial dos jogadores e que tornam o jogo numa correria infernal, é uma tarefa complicada mas desafiadora... e essa tem sido a minha vida em todos os lados e aqui na China é igual.

Por isso, o investimento do futebol chinês só será rentabilizado quando o nível do jogo estiver perto do nível do valor dos nomes sonantes que vão contratando. Neste momento a vinda de grandes jogadores só funciona como medida de marketing na promoção dos Clubes ou das empresas que os contratam...


2. ESPAÇO FUTEBOL: O futebol que se pratica em Portugal é, na sua generalidade, de fraca qualidade. Os jogos são quase sempre enfadonhos, com muita luta, muita correria, mas pouco cérebro, pouco critério, pouca qualidade técnica, pouco futebol, ao fim e ao cabo! O mister Fernando Valente é, reconhecidamente, um treinador que valoriza um tipo de jogo atractivo. Porque é que tem de sair do País, sem nunca ter chegado sequer à Primeira Liga?


FERNANDO VALENTE: É verdade que saí do país e que defendo um tipo diferente de ideias para o jogo que se pratica em Portugal, mas não é definitivo que não possa chegar à 1ª Liga, ou que chegar à 1ª Liga seja o objectivo maior para quem é Treinador de futebol. O Paulo Sousa nunca treinou na 1ª Liga em Portugal e tem feito uma carreira digna de registo.

Por isso, acredito que se as minhas ideias forem influenciadoras junto dos meus jogadores e se se traduzirem em boas exibições e consequentemente em bons resultados, ainda tenho muito tempo para prestar serviços noutros patamares competitivos. Quando reconhecem que as minhas equipas, os meus jogadores e o meu jogo é diferente, quer dizer que o que tens feito é digno de destaque e que os resultados também têm sido bons, senão não estaria onde estou. Estou onde estou porque fui seleccionado por um colega de profissão, Luís Castro, uma referência em Portugal, que reconheceu no meu trabalho com as equipas que treinei, competência e diferença no jogo que se pratica em Portugal e isso faz-me acreditar que estou no caminho certo e quando perceberem que o Futebol Português precisa de ideias que valorizem o Jogo e o Jogador então estarei sempre a tempo de treinar na 1ª Liga...

Por isso, concluía dizendo, que se merecer e demonstrar que é possível continuar a ter sucesso defendendo outro tipo de ideias, irei chegar à 1ª Liga ou a outros patamares competitivos, se não acontecer não há problema, porque ninguém me tira o que vivi com os meus jogadores e o prazer que tive em desfrutar do jogo que eles construíram nas diversas equipas que treinei e eles sim, fizeram com que me sentisse muito mais que um “Treinador de 1ª Liga“...


3. ESPAÇO FUTEBOL: O resultado no futebol é muitas vezes decidido por factores aleatórios. Além disso, há muitas diferenças de recursos materiais e humanos entre uns clubes e outros. Nesse sentido, avaliar um treinador apenas pelos resultados é, logicamente, redutor! Como avalia as competências de um treinador? O que o faz distinguir entre o bom e o menos bom treinador? O que acha que tem mais peso: questões da Ideia de Jogo e sua Operacionalização ou a dimensão da Liderança e Comunicação?

FERNANDO VALENTE: Todas são importantes, mas penso que actualmente, um Treinador tem várias áreas de intervenção e tem que saber dinamizá-las para que o seu trabalho e a sua liderança sejam valorizados. Saber do treino, saber do jogo e essencialmente saber de pessoas, são requisitos fundamentais para se ser um bom Líder e um bom Treinador. O papel do treinador na gestão das pessoas que o rodeiam é fundamental para ter sucesso.

Costumo dizer que neste momento gerir o treino e o jogo são a parte mais fácil do trabalho do Treinador, agora gerir as pessoas que andam à volta do grupo e influenciá-las positivamente para se sentirem parte integrante dos objectivos que o Clube tem, é realmente a tarefa mais difícil e aí penso que nos últimos anos investi, na procura de ferramentas que me têm ajudado a saber gerir com resultados efectivos tudo o que me rodeia, duma maneira influenciadora e que gera fortes dinâmicas colectivas.

Gostava de acrescentar que onde os treinadores falham muitas vezes, porque não estão preparados ou acham que não é importante, é na Comunicação... e quando falamos em comunicação não é só aquela com os jogadores, mas essencialmente a que vai para fora do grupo de trabalho, passar mensagem para fora sobre aquilo que são os objectivos do Clube e da equipa e muitas vezes a oportunidade de valorizar e promover o seu trabalho e as suas ideias, desde que elas sejam potenciadoras e marquem a defesa de uma determinada maneira de ver o Futebol, o Jogo e os Jogadores...


4. ESPAÇO FUTEBOL: Proponho um olhar para o futebol internacional enquanto apaixonado. Acha que já está tudo inventado?! Para onde caminha a evolução do jogo? Não acha que se dá muita importância ao 'não deixar jogar' e pouca ao 'querer jogar'? Mesmo diversas equipas de topo, não pensa que deveriam puxar mais o futebol para cima, tendo em conta os recursos de que dispõem?


FERNANDO VALENTE: Ao longo dos últimos anos, fui sempre muito crítico em relação ao jogo que é jogado por grande parte das equipas, porque a maior parte “não joga“, a maior parte quer é “não deixar jogar“. Por isso, os poucos treinadores que investem em ideias diferentes e acrescentam “Jogo ao Jogo“ acabam muito facilmente por se destacar... Como pode estar tudo inventado se dizemos que “não há 2 jogos iguais...”? Quem trabalhou comigo, pode confirmar que andei sempre a fugir dos padrões que se foram implantando no jogo em Portugal. Claro que também trabalho e desenvolvo o básico que todos fazem, como por exemplo os principais princípios de jogo ofensivos e defensivos, todos desenvolvem zonas de pressão, eu também, mas dou muito mais importância a processos que me ajudem a fugir dessa pressão, tornando muito fácil anular essas acções. Trabalhei sempre na estrutura de 2 linhas de 4 e 2 avançados, que agora é moda, mas desenvolvi conceitos que variam conforme os problemas do jogo e da interpretação que os jogadores dão ao momento que estão a viver no jogo. Por isso, penso que a evolução do jogo passará por desenvolver processos neuro-tácticos, que entram no subconsciente dos jogadores e que os ajudam a decidir as melhores opções em cada momento do jogo, por isso se fala muito hoje na tomada de decisão...

Mas se o Treinador não ajuda o jogador a perceber o jogo, vai ser sempre muito difícil desenvolver um jogo de qualidade. Se não sei o que se passa no Jogo, como vou saber o que fazer...? O que sabemos é que é também possível acontecer tudo no jogo, marcar golos de várias maneiras, de bola parada, de ressalto, na própria baliza, de penalty... mas a probabilidade de isso acontecer é muito reduzida, e o que eu vejo no jogo actual são acções com poucas probabilidades de terem sucesso, em que os duelos físicos são constantes e onde o jogo colectivo com bola é muito fraco... Por isso, sempre falei em desenvolver uma cultura de jogo e não em modelos de jogo que inibem e que se limitam a controlar o adversário e não em desenvolver o Jogo jogado.

Também percebo que a indústria do Futebol, vai produzindo ferramentas que podem ajudar os Treinadores a recolher dados e trabalhar sobre eles, mas acho que hoje esse negócio entrou de tal maneira nos Clubes, que alguns começam a pensar que estão muito à frente dos outros, mas o que conta é o produto final e o que as pessoas vêem quando vão aos estádios: o Jogo e as emoções que ele desperta em quem joga e em quem vê. E pelo que sabemos os estádios continuam vazios e a falta de ideias é abismal... Por isso digo, que mais importante que os dados que recolhes é a tua capacidade de “medires“ e avaliares as emoções que os teus jogadores sentem quando em campo desfrutam e dão corpo às tuas ideias.

Já viram alguém em cursos de treinadores, ou congressos, ou seminários, falarem do poder das emoções: a equipa estava confiante, feliz e alegre, os jogadores em campo correram muito porque estavam a sentir o jogo, a divertir-se e a percentagem de posse, de “comprometimento“ entre eles, era tão elevada que entusiasmaram as bancadas...?
Câmaras em jogo e treino avaliam dados e zonas quentes a vermelho, GPS's medem a correria, analistas analisam se o campo inclinou mais para a direita ou esquerda com os ataques ou os cruzamentos... que aparelho avalia as emoções...?

Por isso, concluo que as equipas jogam o jogo que as ideias do Treinador promove e umas são boas e outras são más... mas aceito que haja quem goste de “fast-food“ e quem goste de “Gourmet“...


5. ESPAÇO FUTEBOL: Já li acerca das suas principais referências, treinadores com quem conviveu, que contribuíam para a forma como hoje vê o jogo. Mas em termos de inspirações mundiais ao longo da História, que treinadores mais o influenciaram e em cujas ideias mais se reviu? E qual o melhor jogador que viu na vida e porquê?


FERNANDO VALENTE: Sabemos que o futebol joga-se com ideias e que há muitas maneiras de jogar e muitas maneiras de treinar para obter o sucesso. Por isso, a minha inspiração veio sempre daqueles que desenvolveram um tipo de jogo em que o “jogo com bola“ era o mais importante e onde os jogadores podiam exprimir todo o seu potencial técnico nas acções com bola, porque são estas que valorizam o jogo e o jogador. Neste caso, Johan Cruyff marcou a diferença e influenciou uma ideia de jogo que atingiu o seu máximo com Pep Guardiola no Barcelona. Por isso, gostem ou não, Pep Guardiola será sempre uma referência para mim e para todos os que gostam do futebol e do jogo que envolve, que apaixona, que valoriza a bola e que, independente dos contextos, deixa sempre uma imagem de qualidade por onde passa, seja em Espanha, Alemanha ou Inglaterra... e que continua a ganhar.


Todos percebemos que os resultados e os títulos, perpetuam alguns no mundo das estatísticas, mas o que é eterno é a marca que deixaste e o contributo que deste ao desenvolvimento da modalidade e o estilo que desenvolveste e que tornou o jogo das tuas equipas diferente e mais atrativo que os outros... Fomos campeões da Europa, com muito mérito, é verdade, mas como jogava Portugal? Que tipo de jogo é que os portugueses desenvolveram para que sejam recordados e façam escola? Sangue, suor, lágrimas, sofrimento... e muita fé. Não é este Futebol em que eu acredito, é precisamente o contrário, onde reina o talento, a alegria, a diversão e o prazer de jogar e de entusiasmar quem vê... Muitos dizem que é por isso que sou um romântico, mas também é por isto que os grandes jogadores da história do Futebol foram aqueles que deixaram nos estádios esses sentimentos...

O maior jogador da História do Futebol de todos os tempos para mim é... Lionel Messi e felizes daqueles como eu, que viveram para testemunhar e desfrutar com o seu jogo. Porquê...? Porque ele constrói e desconstrói o jogo, desliza como uma onda até à praia... e acaba em golo.